Plínio Camillo – nasceu em 26 de novembro de 1960. Aos três anos descobriu que as letras tinham significados. Aos cinco, a interrogação. Aos nove, não era sintético. Aos 12, quis ser espacial. Aos 15, conquistou a exclamação. Aos 17 viu os morfemas. Aos 20 estava no palco. Aos 22 se viu como um advérbio. Aos 25 desenredou a Lingüística. Aos 27 redescobriu as reticências. Aos 30, a juventude. Aos 35 recebeu o maior presente: a filha que lhe trouxe a felicidade. Aos 40 desvendou uma ligeira maturidade. Aos 41 volta para Sampa!!!. Aos 45 recebeu o prazer de viver em companhia. Aos 50 anos, usa óculos até para atender telefone. Aos 51, se diverte escrevendo. Mantém dois blogs:
No ônibus
Por Plínio Camillo
Minha mãe sempre me levava de ônibus para a escola.
Lá eu ficava o dia inteiro. Brincava, lanchava, tomava meus remédios,
almoçava, brincava, lanchava e tomava outros meus remédios.
A canoa virou / Por deixar ela
virar / Foi por causa do Luiz que não soube remar.
Se eu fosse um peixinho / E
soubesse nadar / Tirava o Luiz do fundo do mar.
As tias, que não eram irmãs da minha mãe e nem do meu pai, mais tarde: me
davam banhos, trocavam as minhas fraldas e o jantar.
Meio de soneca, de noite, minha mãe me pegava e de ônibus me levava para
casa.
Sempre na ida e muitas vezes na volta, no ônibus estavam: a moça de calça
apertada, a de barriga de fora, a
com cara de peixe, a magrela de blusa florida, a gordona com a bolsa grande, a velha que peidava fininho, o casal de
pombinhos, o vesgo que falava sozinho, o homem que rezava baixinho, o rapaz com uma tiara no cabelo, o velho fedido, a menininha
faladeira e sua mãe fofoqueira. As amigas da minha mãe, minha mãe e eu.
O motorista sempre era o mesmo e só mudavam os cobradores.
Eu preferia a moça com um brinco no nariz. Ela gostava de cantar e contar
piadas. Já o velho de bigode pintado de preto, era muito rabugento, mas sempre
dava bala para mim.
Minha mãe não gostava dele! A amiga dela sim!
— O que aconteceu que não veio ontem?
— Fiquei resfriada…
— Vai piloto!!! A gente tem família para cuidar!
— Não veio ontem?
— Acordei atrasada, o meu neguinho chorou a noite toda!
— Motorista, para de paquerar. Vamos! Vamos!!!!

— O que aconteceu?
— Meu marido voltou ontem …
— Um passinho pra frente por favor .
— Motorista! Isto aqui não é avião, não;
— Um passinho para trás, por favor!!
Outro dia, em uma ida:
— Ele me deixou — disse o rapaz com uma tiara branca no cabelo, unhas
pintadas e os olhos inchados
— Fica assim não — disse a moça de calça apertada que estava com uma saia
branca também apertada.
— Falou que não agüentava mais viver comigo
— Fica assim não
— Quero morrer … meu Deus … morrer!!
Na volta de outro dia, o rapaz com uma tiara verde no cabelo e com as
unhas borradas conversava sobre flores e sementes com o homem que rezava
baixinho.
Nesta volta, no banco de trás, vi a menina faladeira brincando com a
boneca.
Borboletinha / Tá na cozinha / Fazendo
chocolate / Para a madrinha / Poti / Poti / Perna de pau / Olho de vidro / e
nariz de pica pau / Pau
— Motorista!!!! É casado com mulher feia??? Senta a ripa!!
Numa noite fria e chuvosa. Todas as janelas estavam fechadas. Eu
apreciava o teto e o ônibus parou em um ponto. Entrou um homem muito grande,
muito bonito e muito barbudo que carregava um saco sujo. A amiga da minha mãe
falou que ele fedia xixi!!!
Todos ficaram com medo. Eu não tinha medo do homem do saco.
Ele foi andando pelo corredor de cabeça erguida, olhando para todos.
Parou do lado daminha mãe.
— Qual o nome dele?
— Luiz — disse a minha mãe não olhando para o bonito homem do saco
— Num é muito grande para ficar no colo?
— Não é da sua conta!
— É muito babão também!!
— Não é da sua conta.
-- Parece meio debão ...
Minha mãe olhou feio para e o Homem bonito com cheiro de xixi.
Ele ficou olhando para mim. Sorriu.
Sorri.
Riu
Gritei.
Riu mais.
Sorri e gritei.
Logo desceu. O cheiro do homem bonito ficou.
— Motorista! Na próxima vez que abrir a porta pra esse sujeito, vou
reclamar com o fiscal!
Outra ida.
— Ele me deixou! — disse a moça de calça apertada com um vestido creme
muito apertado, que dava para ver a calcinha vermelha e com os olhos inchados
— Fica assim não — disse o rapaz com uma tiara cor de rosa no cabelo
— Falou que não agüentava viver comigo.
— Fica assim não
— Quero morrer … Meu Deus … morrer!!
Na mesma volta, a moça de calça apertada com um com um vestido creme
muito apertado que dava para ver a calcinha preta conversava com a cobradora e
ria alto das piadas.
Nesta volta, no banco de trás, ouvi da menina faladeira brincando com a
boneca:
Fui certa vez na casa do japonês / e
o japonês taco cigarro no chão / A japonesa começou a me ameaçar / E o japonês
quis por a bomba em minha mão / e disse então: Cata aí / cata aí / / cata aí / /
cata aí / cata / cata aí / / cata / cata / cata já./ Tu me mandou cata Japão? /
Cata aí tu que tu que taco no chão
Outro dia o meu pai me levou para a escola.
Foi no mesmo dia que a minha mãe caiu da escada e ficou com o olho roxo.
Entramos no ponto de sempre.
Ele me colocou sentado sozinho no banco. Não consegui ficar parado.
Queria ficar, mas não conseguia. Meu pai me ajeitou e ficou de pé. Não queria
deixar o meu pai bravo. Sempre que meu pai ficava bravo a minha mãe caia da
escada.
À noite, o meu pai demorou muito!
Na escola sobraram: a tia Dalva, eu e o vigilante, Seu Zé.
A tia Dalva falou para o meu pai que não podia fazer aquilo comigo.
Meu pai gritou para a tia Dalva que eu era um retardado.
Tia Dalva gritou que não podia dizer aquelas coisas na minha frente.
Meu pai gritou mais alto que eu era um bocó de mola.
Tia Dalva chorou e o Seu Zé mandou o meu pai me levar logo
Meu pai me carregou.
Carregou muito apertado. Bufou e falou baixinho que eu era um imbecil.
No ponto, disse que eu estava muito pesado.
Na ultima volta, o motorista deixou o ônibus cair em um córrego.
Voei do colo da minha mãe e bati a cabeça.
Depois ... todos brincavam de roda
Sapo Cururu / Na beira do rio / Quando
o sapo grita:/ ó Maninha / Diz que está com frio / A mulher do sapo / é quem
está lá dentro / Fazendo rendinha / ó Maninha / pro seu casamento.
Procurei a minha mãe e ela pulava corda com o rapaz com uma tiara azul
celeste no cabelo.
Ela me viu, me beijou e voltou a pular.
Quis chorar e me chamaram para brincar de roda.
Ciranda / cirandinha / vamos todos
cirandar / Vamos dar meia volta / Volta e meia vamos dar / O Anel que tu me
destes / era vidro e se quebrou / O Amor que tu me tinhas / era pouco e se
acabou / Por isto o Seu Luiz / faça o favor de entrar na roda / diga um verso
bem bonito / diga adeus e vá se embora.
Fui para o meio da roda e disse que sou pequenino com a cabeça torta e meu
pai não gosta.
Todos deram as mãos e com um grande pulo chegaram à lua, onde viveram o
resto de seus dias.
Fui morar com a madrinha da minha mãe.
Nana nenê / Que a Cuca vem pegar?
Mamãe foi pro céu / Papai foi passear
Ilustração: Ethel Traphagen The Wiley Technical Series Costume Design and illustration (New York: John Wiley & Sons, Inc., 1918) 36